O livro "Dom Casmurro" (Machado de Assis), revistas brasileiras antigas e uma cartilha com dicas sobre a língua russa ajudam a ativista do Greenpeace Ana Paula Maciel, 31, a enfrentar a tensão e a incerteza na fria cela do centro de detenção de Murmansk, noroeste da Rússia.
Sozinha em seu cubículo, a bióloga brasileira tem direito a uma hora de ar livre todos os dias num espaço de mais ou menos 10 m².
Não se pode chamar o "benefício" de "banho de sol" numa cidade conhecida como a "capital do polo Norte", com média de temperatura entre -2,7º C e 3,7º C.
Durante visita da Folha a Murmansk nesta semana, as ruas estavam cobertas de gelo e o frio chegava a -5º C, até tranquilo perto dos quase -30º C possíveis entre fevereiro e março.
A solitária que abriga Ana Paula tem vaso sanitário, calefação e um aparelho de TV, mas com programação em russo --um canal de músicas às vezes passa algo em inglês.
A expectativa é que a Justiça local negue novamente hoje o pedido de liberdade à brasileira, feito pelos advogados do Greenpeace.
Ela e mais 29 ativistas foram presos em 19 de setembro no navio Arctic Sunrise, no Ártico, quando protestavam contra a estatal russa de gás e petróleo Gazprom.
O clima em Murmansk, além do óbvio frio, é tenso porque as próprias autoridades locais foram pegas de surpresa com a prisão, de uma só vez, de 30 pessoas, sendo 26 estrangeiros de 18 países.
O caso mobilizou toda a estrutura policial e judiciária da cidade, que tem pouco mais de 300 mil habitantes e é conhecida por abrigar a Frota do Norte da Marinha Russa.
As audiências para ouvir os presos, por exemplo, foram divididas em duas cortes. O centro de detenção teve que se arrumar às pressas para receber os "visitantes".
Para piorar, como o caso ainda está em fase de investigação, o acesso aos autos é praticamente nulo.
Para um advogado obter informação tem sido tão difícil quanto para qualquer cidadão --pior ainda para um jornalista estrangeiro.
INVERNO ESCURO
Ana Paula Maciel era o que se chama de "moço de convés", responsável por serviços gerais do barco. Por ser uma função mediana na hierarquia, advogados russos acreditam que a bióloga pode receber uma pena menor do que outros colegas.
A prisão preventiva de todos expira dia 24 de novembro. Depois, podem ser soltos ou continuar presos se houver pedido de prorrogação das investigações por mais quatro meses. Quem vive em Murmansk diz que o cenário mais nebuloso é receber a condenação por alguns anos na cidade.
Um dos maiores pesadelos é o período do mês de janeiro chamado de "noite polar", quando não existe sol por vários dias. Seria uma escuridão na cadeia.
Segundo as autoridades russas, os apelos políticos feitos por esses governos a favor dos presos, como o da presidente Dilma Rousseff, tiveram ou terão pouco efeito.
Ao ser cobrado externamente, o governo de Vladimir Putin tem se esquivado, alegando que pouco pode fazer porque o episódio está na esfera judiciária.
"Estamos fazendo o possível desde o começo, como as visitas consulares para monitorar o tratamento dado a ela na prisão. Agora, cada país tem sua legislação interna, temos que respeitar", diz o embaixador do Brasil na Rússia, Fernando Mello Barreto.
Foi das autoridades brasileiras que Ana Paula ganhou, para se distrair, revistas semanais do Brasil, o livreto de russo e obras de Machado de Assis, Paulo Leminski e Oscar Wilde.
O presídio permite que ela receba apenas a visita de um advogado e de funcionários da embaixada brasileira na Rússia, conforme estabelece a legislação internacional.
Segundo relatos de quem esteve com ela, a bióloga tem se mostrado, por enquanto, "emocionalmente equilibrada", mas assustada com a possibilidade de continuar presa nessas condições.
Uma vez por semana, o Greenpeace tem autorização para levar mantimentos, uma média de um quilo por dia, como produtos de higiene, comidas, boiler, roupas, água e demais coisas que os presos pedem. A embaixada brasileira já fez, por exemplo, pedido para que livros fiquem de fora desse limite de peso.
O centro de detenção permite à bióloga, no máximo, telefonar de vez em quando para mãe no Brasil.
GOOGLE TRADUTOR
As cartas escritas à família chegam a ser traduzidas pela polícia russa por meio do Google Tradutor, como forma de monitorar todos os passos dos ativistas.
As autoridades não têm se mostrado dispostas a fornecer o que estão coletando de provas, um dos motivos que levaram Ana Paula e seus colegas a se calar sobre o caso perante a Justiça até agora.
O Greenpeace teve de contratar um advogado russo para cada ativista porque as autoridades querem julgar individualmente cada conduta.
A solução política considerada até certo ponto viável seria pelo Tribunal Internacional do Direito do Mar, acionado pela Holanda, já que a bandeira do barco do Greenpeace era holandesa. O governo russo, porém, já disse que não aceita discutir o assunto nessa esfera.
O caso é considerado pelo Greenpeace como o mais grave em 42 anos de história.
Fonte: Folha Online