"Vita! Na vita", repete Muzima Rachel, de 35 anos. A palavra soa como vida, mas, em swahili, idioma falado na República Democrática do Congo, quer dizer guerra. Ela tentava explicar como a última determinou a primeira. "Guerra! Foi a guerra. Há dez anos eu fujo dos conflitos, mas eles me perseguem." O último matou o marido dela e, antes disso, o irmão.
O marido tinha 38 anos e era professor. Um dia, rebeldes do grupo Congresso Nacional para a Defesa do Povo (CNDP) atacaram Muesso, onde viviam já refugiados de outro conflito em Kivye. Os milicianos do CNDP trancaram as portas e janelas da única escola do vilarejo e queimaram todos vivos. Muzima estava grávida, por isso calcula que a tragédia ocorreu há três anos, idade do caçula.
Muzima escondeu-se na floresta com os filhos e, quando sentiu-se mais segura, eles caminharam numa mesma direção por três dias e três noites até Kitchanga. Lá, porém, "não havia ajuda humanitária". Partiram para Sake. Os confrontos, então, estouraram entre o governo congolês e o grupo rebelde M23, que atua na fronteira com Ruanda. Muzima voltava do campo, onde tinha ido buscar lenha, quando um bando cruzou. Foi estuprada não sabe dizer por quantos. Lembra-se apenas que "só o comandante usou camisinha".
Muzima fugiu de novo. Dessa vez, abrigou-se com as crianças em uma escola do campo de deslocados de Mugunga - lotado. Lá recebeu a notícia de que o irmão morrera com uma bala perdida em outro confronto. Ela arrumou as trouxas novamente e partiu, dessa vez levando os quatro filhos e os três sobrinhos, de entre 3 e 14 anos, que agora cria sozinha (a cunhada está em outro campo e não tem como cuidar dos filhos). Eles vivem no campo informal de Bulengo, na periferia miserável de Goma, no leste do Congo.
Nos últimos 12 meses, os conflitos deixaram mais de 100 mil deslocados na região, segundo a ONU. E o número deve aumentar com a volta dos combates entre o M23 e o governo congolês após o fracasso das negociações de paz que se desenrolavam desde agosto em Uganda.
A crise exacerbou um velho problema. No total, mais de 2,6 milhões de congoleses vivem em campos de deslocados - planícies vastas de palhoças erguidas sobre a lama. Com uma agravante: a ONU só pode operar nos campos "oficializados" pelo governo, o que leva tempo.
Na Província de Kivu do Norte, onde ocorre a maior parte dos conflitos, quatro em cada cinco campos são informais como Bulengo. Nele, vivem 60 mil pessoas, a maioria fugida dos embates deflagrados em dezembro entre governo e M23 - criado em 2012 por dissidentes do CNDP, responsável pela morte do marido de Muzima e de milhares de outros civis, mas integrado ao Exército do Congo em um frágil acordo, em 1999.
"A legalização dos campos de deslocados tem componentes políticos e econômicos. Depende de quem é dono da terra e se ela está em território inimigo (por exemplo, em uma região de maioria tutsi, etnia do governo de Ruanda, acusado de financiar a insurgência do M23)", disse ao Estado a funcionária de uma ONG que trabalha com deslocados.
Viver em um campo informal significa não saber quando se comerá ou alimentará os filhos, porque a ajuda não é regular. "Quando há distribuição, comemos. Quando não...", diz Muzima. "É nesses campos que a desnutrição se alastra e mata. No Congo, a maioria dos moradores sobrevive da agricultura familiar. Quando têm de fugir, deixam para trás a casa e essa forma de subsistência", diz a chefe de enfermagem Geneviève Dereerper, da Médicos Sem Fronteiras.
Mesmo nos campos reconhecidos pelo governo, a ajuda é escassa. Na semana passada, o Programa Mundial de Alimentos da ONU admitiu não ter os recursos necessários para dar assistência a um número cada vez maior de deslocados. Segundo a organização, pelo menos 6,4 milhões de congoleses precisam de comida e de ajuda emergencial - e não conseguem.
Muzima consegue alimentar as crianças embrenhando-se no mato para buscar lenha para vender ou fazendo bicos em lavouras alheias. Não ganha nada, apenas troca por comida, como se faz nos vilarejos, onde os aldeões trocam alimentos em mercados de escambo. Num início de tarde, ela voltava com a lenha quando foi surpreendida por um estranho e estuprada pela segunda vez. "Eu fujo da guerra, mas ela me persegue."
Fonte: Agência Estado