Fernanda Fernandes Bezerra, 31, mora há quatro anos no acampamento Marielle Vive, em Valinhos (SP), a 89 quilômetros da capital paulista. Com um bebê de dois meses, ela decidiu deixar os dois mais velhos —de 13 e sete anos— morarem com o pai, seu ex-marido, temendo que o local seja alvo de uma reintegração de posse. Esse é um trauma pelo qual a família já passou quando vivia em uma ocupação em Mogi Guaçu (SP), a 160 quilômetros da cidade de São Paulo.
A situação pode se repetir porque uma decisão tomada no fim de outubro pelo ministro Luís Roberto Barroso, do STF (Supremo Tribunal Federal), liberou despejos e reintegrações de posse depois de mais de um ano de proibição devido à pandemia de covid-19.
A medida pode afetar ao menos 188 mil famílias —cerca de 752 mil pessoas—, segundo estimativas de organizações e movimentos sociais. O dado pode ser subestimado porque não contempla famílias que vivem em casas e apartamentos, por exemplo.
HISTÓRICO
Em junho de 2021, Barroso suspendeu por seis meses ordens de remoção e despejos de áreas coletivas habitadas antes da pandemia. Ele considerou que despejos em meio à crise sanitária poderiam prejudicar famílias vulneráveis.
No fim de 2021, o ministro prorrogou a proibição de despejos até 31 de março de 2022. Depois, em uma terceira decisão, deu prazo até 30 de junho e, por último, estendeu até 31 de outubro.
Partidos de esquerda e movimentos sociais pediram que o ministro renovasse a decisão mais uma vez, mas ele decidiu liberar as ações de despejo, destacando o arrefecimento dos efeitos da pandemia.
TRANSIÇÃO
Na decisão, Barroso determinou que os tribunais que tratam de casos de reintegração de posse instalem comissões para mediar eventuais despejos antes de qualquer decisão judicial. Ministério Público e Defensoria Pública devem participar.
Ele também determinou que famílias em situação de vulnerabilidade social sejam encaminhadas a abrigos públicos ou que se adotem outras medidas eficazes para resguardar o direito à moradia.
Barroso autorizou ainda a retomada do regime legal para ações de despejo em caso de locações individuais sem necessidade de regras de transição. Para ele, essas locações estão reguladas em contrato e não têm a mesma complexidade do que ocupações coletivas.
Raquel Ludermir, coordenadora da ONG Habitat Brasil e doutora em desenvolvimento urbano, diz que a decisão do ministro é positiva, mas é necessário saber se será efetivamente cumprida. "O receio é que o que está no papel não seja respeitado", diz. "Receio que seja grande a avalanche de despejos, uma pandemia de despejos.".
MEDO DE PERDER O TETO
Uma dessas decisões a que Raquel se refere diz respeito à ocupação Jorge Hereda, zona leste de São Paulo.
No dia 3 de novembro, o juiz José Luiz de Jesus Vieira, da 1ª Vara Cível do Foro Regional da Penha de França, disse que, diante da expiração do prazo determinado por Barroso, "é de se retomar a reintegração de posse destes autos".
Ele determinou que o Comando do 19ª Batalhão de Polícia Militar Metropolitano fosse oficiado com urgência "para as providências necessárias para o início das reuniões preparatórias para a execução pacífica da reintegração de posse objeto do presente litígio"
Adriana Angelina Da Silva, 48, vive há quase dois anos com o marido e um dos seis filhos, de 20 anos, na ocupação. Uma das coordenadoras do local, ela conta que as pessoas a procuram em busca de um espaço para construir um barraco —no total, são 802 famílias vivendo no terreno que antes estava desocupado.
Adriana foi viver na ocupação após perder o emprego de auxiliar de cozinha e ficar sem condições de pagar o aluguel de R$ 600, mais as despesas básicas, como água e luz.
"Vivo apreensiva. Está todo mundo muito preocupado porque aqui tem crianças, idosos, deficientes."
Fotos: arquivo pessoal
Reportagem: Uol