Pensar a forma como escritores negros brasileiros conquistaram espaço no sistema literário e ganharam a atenção da sociedade nas décadas de 1960 e 70, e buscar contrapontos e semelhanças com os chamados escritores periféricos que entraram em cena a partir dos 90 e 2000. Esta era a ideia original de Mário Augusto Medeiros da Silva para a tese de doutorado em sociologia que defendeu junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), orientado pela professora Elide Rúgbi Bastos.
"A questão é que a pesquisa foi se ampliando e passei a focar também o papel das ciências sociais nos movimentos negros, uma relação que considero muito interessante, mas pouco discutida nesta área acadêmica. A tese procura dar uma contribuição nesse sentido. É uma relação que vai se construindo e gerando bons frutos até o golpe de 64, que atingiu tanto os sociólogos quanto os intelectuais negros, sendo retomada posteriormente", diz Mário Medeiros.
A tese analisa a produção literária de escritores autoidentificados negros ou periféricos, como Carolina Maria de Jesus (1914-1977), Paulo Lins, Reginaldo Ferreira da Silva (Ferréz) e o coletivo de autores Quilombhoje.
E a pesquisa, afinal, recebeu o Prêmio CES para Jovens Cientistas Sociais de Língua Portuguesa, instituído pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, além de menção honrosa da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs).
Mário Medeiros afirma que a literatura negra possui uma longa história que vem da virada do século 19 para o século 20, construída por escritores e intelectuais que se afirmam produtores de uma literatura na qual o negro é o autor da prosa e da poesia e não meramente personagem. "João da Cruz e Souza, por exemplo, foi alçado a ícone dos escritores negros por contribuir para a formação deste universo de literatura negra. Lima Barreto é outro ícone e persiste a controvérsia se Machado de Assis teria perfil para completar o triângulo de referência. Lino Guedes foi um dos poucos que publicaram livros não como edições de autor, mas por meio de editora", finaliza.
Carolina Maria de Jesus, mineira que virou escritora em SP/ Foto: ReproduçãoOutras Histórias da literatura negra - Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento, à cerca de 70 km de Uberaba, no Triângulo Mineiro, em 1914. De família muito pobre, era órfã de pai (ou não o conheceu) e, trabalhando na lavoura e estudando apenas até o 2º ano, percebeu que seu futuro seria continuar labutando a terra ou virar empregada doméstica. Partiu para a região de Ribeirão Preto no desejo - ela conta em suas memórias - de chegar a São Paulo e ser alguém. Lá chegou ao final dos 1930, vagando por pensões durante alguns anos, até se tornar uma das primeiras moradoras de favela, a do Canindé, na cidade que começava a enfrentar os problemas da metropolização.
A vida de Carolina virou de ponta-cabeça quando o repórter Audálio Dantas foi escalado pela Folha da Noite para cobrir um protesto na favela do Canindé, por causa de um playground instalado pela prefeitura onde adultos se divertiam com os brinquedos das crianças. Na aglomeração se destacava uma mulher negra, alta e de lenço na cabeça, que ameaçava registrar os nomes dos grandalhões em seu diário.
Uma favelada negra que escrevia um diário. Aguçado o faro de repórter, Dantas seguiu Carolina até o barraco onde se deparou com latas guardando cadernos e folhas avulsas que ela separava como catadora de papel, a fim de registrar os acontecimentos de todo santo dia.
Carolina autorizou o repórter a levar e analisar o material. E ele viu o ineditismo daqueles textos, sobre a vida de uma mulher pobre, negra, mãe solteira de três filhos com pais diferentes - e seu olhar sobre o cotidiano de uma favela, novidade ruim na São Paulo dos anos 50. A seleção feita por Audálio Dantas resultou em Quarto de despejo - Diário de uma favelada, lançado pela Francisco Alves em 1960. O livro causou forte impacto na metrópole brasileira que mais crescia.
Quarto de despejo chegou a vender mais que Jorge Amado, foi traduzido para 13 idiomas (japonês, esloveno e russo, inclusive) e Carolina de Jesus passou a ser convidada para debates sobre o livro e a favelização. E, incitada a escrever um segundo livro, ela deixou a favela para produzir Casa de alvenaria, também um diário, retratando aquele momento conturbado da sua vida, em que saiu do anonimato para o estrelato de um dia para o outro. Faleceu em condições precárias, em 1977.
Fonte: Unicamp